Olá pessoal caminhadeiro! Todos bem? Eu
também! Aliás, até estou bem disposto. Tanto, que resolvi presentear-me.
Comprei mais um dicionário. E mais, comprei um Houaiss. Dois volumes. Por causa
do novo acordo ortográfico. O nosso amigo Gil, que parece ter vários, diz-me
que é um dos bons dicionários. Acredito. Ele é perito. E para o estrear,
resolvi verificar se fizeram mexidas. Numa das nossas palavras preferidas. Isso
mesmo, caminhar! E tudo isto porque, escrever à revelia das convenções, pode
gerar confusões. Por exemplo, se caminhar se pudesse agora, também dizer e
escrever, camilhar? Vá, não antecipem piadas jocosas, pois se já fizemos muitos
quilómetros, também andámos umas milhas jeitosas. Também se poderia agora dizer
e escrever, caminar. O que, de certeza, não seria surpresa. Já temos uma
caminhadeira a caminar. A Carmen. E se a Carmen camina, o Octávio caminha, e
ambos fazem a mesma coisa, penso que há um consenso. Ou seja, também devem ter
feito um acordo. Que me parece não ter
nada de ortográfico. Mas que devem ir celebrando, pelo menos, de vez em quando.
Mas para não fazer mais conjeturas, vamos de caminho, ver o que diz o livrinho.
Ora bem: camilista, camilo, caminha,… caminha? Substantivo feminino, diminutivo
de cama? Cama? De repente fiquei com sono, e sou tentado ao abandono. Mas
insisto. Caminhada, caminhador… e, finalmente, cá está! Caminhar: percorrer
caminho, andar, jornadear, viajar…? Mau… Isto é que é um bom dicionário, Gil?
Percorrer caminho, andar, jornadear, viajar? Então e, conviver, comer e beber,
camaradagem, ver a paisagem, sentir a chuva, o frio o calor, discutir com ardor,
descer e subir? E rir, amiúde, que é bom para a saúde. E até acontece, ser bom
para o stress… Bolas! Que decepção! Perdão queria dizer: que deceção! Quanto ao
dicionário, vou fazer a devolução. Mas as palavras são contagiantes. Folheio
mais umas páginas, e já não penso como antes. Admito! Caminhar,—se calhar—é uma
excepção! Porra! Queria escrever,
exceção! Ainda bem que tenho o dicionário à mão. E resolvo. Já não o devolvo! O
dicionário não tem culpa. Não caminha. Só quem pratica, sabe o que caminhar
significa. Uma palavra não se explica só com sinónimos. Se caminhar fosse
apenas andar, bastava-me uma passadeira, para me consolar. Tenho uma. Mas é
pequena, solitária, logo… precária. Embora, eu possa andar mais depressa, ou
devagar, como diz o manual. Que de outras informações faz tabu. Por exemplo, se
quiser parar e voltar atrás, arrisco-me a cair de cu. Penso em comprar outra.
Uma coisa em bom! Vou à Decathlon. Ah! Agora sim! São inúmeras. Com uma
consola, com vários comandos. E que preciso de comandar, para caminhar? Mas é
larga… comprida… bonita… bem acabada… o piso é negro, como o asfalto… Aaaalto!
Tive um sobressalto. Com este tamanho, e tanta vantagem, ainda lhe põem uma
portagem. E perco a coragem. Não compro! Pois se eu até sei, que caminhar é
mais, muito mais, do que a palavra parece significar! Caminhar é, na verdade,
mais do que o ato físico, parente da mobilidade. É terapia para várias mazelas.
Não tem efeitos secundários, não deixa sequelas. E faz tão bem ao corpo, como
faz á alma. Tem tanto de excitante, como tem de calma. E quando se caminha em
grupo, as significâncias, tal como os benefícios, multiplicam-se, tornando-se
impossível refletirem-se, numa só palavra ou expressão.
Não fora assim, como
explicar o crescimento de um grupo, que começou com meia dúzia apenas, e já
conta com algumas dezenas? Para começar, o grupo sempre foi um corpo social
saudável. E os corpos saudáveis, naturalmente, crescem. Mesmo não sendo biológicos.
Mas parecem. Porque crescem usando o convite
e sugestão,— que o Afonso tão bem faz na canção,—de trazer um amigo também. E
um caminhadeiro passar a dois, de dois a quatro, e assim por diante, não parece,
afinal, a mitose, no social? E por falar
num Afonso, olá Irene, olá Rui e olá Carlos! Sei que não és Afonso, mas o certo,
é que andas lá perto. E um obrigado também, por de vez em quando termos a sorte,
de nos trazerem e levarem, à pronúncia do Norte. E deste juntar de gente, com
origens geográficas, sociais e profissionais muito variadas, opções políticas,
religiosas e clubísticas igualmente distintas, resulta um fervilhar de trocas de
experiências, conversas sobre ciências, política e economia, desporto,
engenharia, viagens e geografia. Também se fala de música, agricultura,
gastronomia e, claro, de linhas férreas, comboios, estações e—já se vê—também
do TGV. E nesta profusão de profissões, tendências, gostos e paixões, todos se
entendem, ensinam, aprendem, e tiram conclusões. Mas estas proveitosas
tertúlias, não são monótonas nem massudas, pois são regularmente entrecortadas,
ou se quiserem condimentadas, com divertidos piriripororós (1). E se juntarmos
a esta profícua fonte de conhecimento e informação, as regulares visitas de
caráter cultural, só se pode concluir que caminhar, afinal, também é ótimo para
melhorar… a cultura geral. Benefício a respeito do qual, o dicionário não
dizia… nem bem, nem mal.
Segundo o meu
defunto e saudoso amigo Matias, no tempo do António da Calçada,—de São Bento,
para algum distraído,—o vinho dava de comer a um milhão de portugueses. Hoje, o
vinho já não tem essa primazia. Perdeu-a, a favor da burocracia. Que, como
decerto constatais, dá de comer a muitos, muitos mais. Ainda assim, a cultura
da vinha, a produção e comercialização do vinho e a sua exportação, ainda é
para muitos... o ganha pão. Mas chegar aos calcanhares da burocracia, em termos
de ocupação, é coisa que dá um trabalhão. E para ajudar o vinho a reconquistar
a posição, dá uma ajudinha, a restauração. E a gastronomia. Sem esquecer o
turismo e a hotelaria. E ao caminhar por este país fora, usufruímos, e contribuímos
ainda que modestamente, para manter vivas estas atividades económicas. Pois que
seria, por exemplo, da cultura da vinha, sem os cultores do vinho? Vinho que
bebemos com gosto, mas também com brio, sem desvario. E reconhecendo tudo isto,
creio que podemos dizer, sem presunção
nem ousadia, que caminhar também ajuda… a economia. Coisa que o dicionário, também não dizia.
Numa das nossas
caminhadas, visitámos o Complexo Mineiro do Lousal. Participei com acrescido
agrado, já que aproveitava o ensejo, para voltar ao meu Alentejo. Seduzia-me
também a probabilidade de visitar a mina propriamente dita, o que não se
concretizou. Desejava experimentar uma aproximação mais realista ao modo de
vida penoso dos mineiros, descendo às cafurnas. E desejava fazê-lo, não por
falta de imaginação para perceber o sofrimento de que tem que ganhar o pão de cada
dia daquela maneira, nem para combater ou testar, qualquer manifestação claustrofóbica.
Talvez fosse apenas algum empenho em aprender, a melhor apreciar o que tenho. Nesse
dia, após a agradável passagem pela paisagem Alentejana, demos connosco no
Armazém Central. Que agora, o que armazena é apenas, o necessário e importante,
para o seu funcionamento… como restaurante. Onde comemos, bebemos e cantámos, acompanhando
antigos mineiros. Confrontado com o à vontade destes cantadores e sofredores
experimentados, um dos nossos cantores de circunstância, lastimou a suposta
pobreza das nossas qualidades vocais. Erro de palmatória, que justificou a
resposta: vale mais cantar mal, do que chorar bem! Não manifestei a minha
discordância a quem fez esta afirmação, porque, que me pareceu de imediato, que
o que estava a ser dito era: quem canta, fá-lo sempre bem! Há é quem ouça mal!
Pois cantar não é apenas, um exercício vocal. É rir, é chorar e sentir, é
espantar o mal. E ou se canta, ou não se canta. Ou se chora, ou não se chora. E
só assim não pensa, a pessoa que por ingénua ou distraída, confunde com chorar,
essa coisa travestida, que é a lamúria carpida, de fingimento vestida. E quanto
a cantar, se alguém desafinar, e fores um homem de bem, acompanha-o,
desafinando como ele também. Pois como diz a canção, “no peito do desafinado
também bate um coração”. E sendo os protagonistas desta situação, gente que só
teve como ofício, a privação e o sacrifício, mas que recusa chorar mal,
cantando bem, percebi ao visitar o Lousal, que caminhar também contribui, para
elevar a elevar a moral. A de cada um, e no geral. Fui ao dicionário, e a
propósito das vantagens para a moral…nem sinal.
Caminhar é também um
modo privilegiado, de pôr o corpo a falar. Mas a falar com quem? Ora vejamos:
se eu tenho um corpo, e tenho uma mente, então eu sou uma trindade. Que, no que
me toca, não tem nada de Santa,e muito
menos de Santíssima, mas me parece evidentíssima. Eu sou eu, o meu corpo e a
minha mente. E a trindade fala desalmadamente, mas nem sempre se entende.
Porque corpo e mente se comportam, frequente e alternadamente, como governo e
oposição. E no meio dessa confusão, estou eu…o Chico. Mas quando se caminha
corpo e mente parecem fazer uma trégua, e dão alguma folga ao Eu. E o eu vai
ouvindo:—não sei se vou aguentar—diz o corpo. Ao que a mente tanto pode
responder:—Aguentas sim que eu ajudo. Como também pode dizer:—Para quê tanto
suadouro, a caminhares como uma lesma, para chegares ao restaurante e ficar
tudo na mesma? Sou tentado a intervir com o meu dote oratório, lembrando os benefícios
para o aparelho respiratório. Mas não me manifesto. Estou a caminhar, e deixo
andar. E andando, outras trindades vão falando. Ainda outro dia, quando
ultrapassava o meu amigo João, no seu passinho de marchante, algo dançante, e
um pouco ofegante, ouvi dele um pulmão,
que à mente dizia:—pensava que deste ar já não se fazia. Como também ouço a sua
mente dizer, quando o sente mais ansioso:—a seguir aquela curva, já vês o
Estádio do Glorioso. Mas o João não se deixa enganar. Está a caminhar e deixa falar. E nestes
diálogos silenciosos, corpo e mente vão percebendo, o que se ganha com a
atividade muscular, o exercício respiratório e cardiovascular… simplesmente a
caminhar. E com muito mais eficácia, que o stock de qualquer farmácia. É pois
dado adquirido, que caminhar faz bem à saúde. Virtude a que o dicionário também
não alude.
E já agora, ainda quero dizer, que sinto um
contido mas imenso prazer, ao ver,—quando passamos por uma vila, uma aldeia, ou
pelo breve casario dum lugar,—que para além da conversa que levamos no ar,
temos por uso saudar, quem vemos e nos vê a caminhar. É que, cruzadas, a
conversa, os bons dias boas tardes, a boa tarde bom dia, soam como uma melodia.
Pois cada saudação tem um som, tem um tempo, tem um tom, tem um toque de
alegria. E nesta sã cortesia, uma música acaba escrita, composta e orquestrada,
na pauta que pode ser, qualquer caminho, ou estrada. E por breves momentos,
tocando essa música fugaz, mas carregada de paz, que a todos parece agradar,
até parecemos a banda, do Chico Buarque de Holanda, que a gente vem ver passar.
E como decerto ninguém contesta, que caminhar em grupo é uma festa, depois que
a música passou, ficou a satisfação em quem a tocou, e na expressão de quem nos
ouviu e olhou. E não sendo jactância, ter um pouco de autoestima, de sentimento
de importância, creio poder afirmar, que teria que ser cego, p’ra não ver que
caminhar… faz bem ao ego. E que diz o dicionário a respeito dos benefícios p’ro
ego? Nada. Nem estopa, nem prego!
Vou terminar. Mas
antes, quero dizer que não sei, se escrevi verso prosado, ou se prosa versejei.
Só posso reafirmar, que escrevi a pensar, ao ritmo, e nas cadências do andar. E
desculpem-me alguns erros, senão mesmo alguns desmandos, pois são falhas de
quem ama, falhas de quem acarinha, que me permito cometer, como quem faz uma
festinha, e porque a língua portuguesa, sendo nossa… também é minha. E como não
conta para o bastão, não sei quantos quilómetros são,—e me parece, que mesmo
que soubesse, o Luís não dava baldas,—aqui termino mais um passeio, pelas
memórias dos caminhos, dos petiscos, dos bons vinhos, e do convívio
prazenteiro. Algumas das muito boas…coisas de Caminhadeiro.
Um abraço. Do Chico.
(1)Nota:
Piriripororó.
Tendo sido abordado
ocasionalmente por alguns caminhadeiros, no sentido de explicar o significado
desta palavra, não o fiz, por falta de conhecimento suficiente, e não querer
alinhar, na prática de falar de coisas que desconheço. Muito embora, tal
prática, a que se deveria chamar doença, se tenha tornado epidémica, e
eventualmente já seja, disciplina académica. Mas, tendo utilizado o termo
anteriormente, vi-me na obrigação de esclarecer os interessados. O
termo,—piriripororó—foi proferido, tanto quanto me lembro, pela primeira vez no
seio dos caminhadeiros, pelo nosso companheiro Gil Furtado, no decorrer da
saudosa jornada de Unhais da Serra. Se foi ele ou outrem quem o descobriu, não
sei. Mas creio poder afirmar, que quem quer que tenha sido, o fez nalgum velho
baú, esconso nos sótãos da imaginação. E foi exatamente aí, que iniciei a minha
campanha—entre muito pó e teias de aranha—começando por separar, tudo o que
tivesse qualquer coisa escrita. Feito isto, passei a analisar cada frase solta,
mesmo sem nexo, e cada palavra, mesmo sem sexo. Oops! Desculpem-me. Fugiu-me a
boca p’rá rima. O que eu queria dizer era: cada palavra, mesmo incompleta. A
primeira que encontrei, aparentemente com sentido, mas cujo significado não
entendi de imediato, dizia: “não consigo convencer a minha namorada a dar uma
piripororada”. Ansioso por saber qual o real significado da expressão, revolvi
cada caco e fragmento esfarrapado de que dispunha, numa investigação minuciosa,
exaustiva e fastidiosa—a que o meu neto certamente chamaria, uma grande
seca—para descobrir que o autor, o que queria… era dar uma queca. Esta
conclusão pareceu-me correta, pois já o caminhadeiro Gil Furtado utilizara
piriripororó, com a mesma conotação erótico-sexual, quando do seu relato de uma
ocorrência medieval. Satisfeito e muito mais seguro, continuei. Mas, para não
ser cansativo, vou passar apenas algumas, das frases e palavras que encontrei.
Por exemplo: piririr, na frase, “a minha reforma não pára de piririr”; ou
pororar, em: “os combustíveis estão sempre a pororar”; “ontem passei o serão na
gargalhada, ouvindo uns piriripororós com muita piada”; ou, mais adiante: “passei
o dia inteiro num piriri-pororó constante”. Vou ficar por aqui. Mas se
continuasse, tal como eu, certamente ficariam
surpresos. Porque, todas as expressões que identifiquei, são atuais e frequentes no nosso meio. O que me
levou,—não conhecendo a língua de origem
destas palavras,—a alguma cogitação… Não terão as palavras, atravessado um portal,
vindas de outra civilização, vivendo no nosso tempo, mas noutra dimensão? Naah!
Eu é que ando a ver muita televisão. Outra particularidade que constatei, foi
que,—sabe-se lá porquê,—partindo de uma palavra que significa basicamente um movimento
de vaivém, mais afeto, por exemplo à mecânica, quase todas as significâncias,
estão associadas ao gozo, ao prazer e à satisfação. Só lamento, o facto da
razão desta desta conexão, ter ultrapassado a minha compreensão. Mas já que
chegámos até aqui, vamos às conclusões: Piriripororó: locução, resultante de
duas palavras, a saber: piriri, forma do verbo piririr, que significa:
encolher, diminuir, recuar; e pororó, forma do verbo pororar, que significa:
crescer, aumentar, avançar. Em função do contexto, esta palavra poderá também
significar: anedota, brincadeira, movimento alternado de vaivém, momento de
humor ou comédia, e… o mesmo que viagra… na idade média. Pode ainda, em
contextos mais intímos, ter outros significados, que por óbvios, e não sendo
vocês pacóvios, me dispenso de enumerar. Ainda assim, aproveito para
exemplificar, a versatilidade e abrangência do termo, lembrando aos
Caminhadeiros, que de vez em quando têm que faltar, que alguns dos benefícios,
que se conseguem caminhando, também se obtêm…piriripororando. E, perguntarão
vocês: piriri-pororó, escreve-se com ou sem hífen? Pois não sei, nem quero
saber! E se estivessem atentos, já teriam reparado que escrevi das duas
maneiras. Por isso façam como eu, e escrevam como muito bem entenderem. Ao
sabor da vossa disposição, das condições climatéricas, do dia da semana… como
lhes der na gana. Porque,—tal como caminhadeiro,—piriripororó, essa palavra tão
versátil, abrangente e linda, não vem nos dicionários,—ainda. E mesmo que
viesse? Ir ao dicionário para quê? O dicionário nem explica, o que caminhar
significa! E pronto! Já escrevi, está escrito! Mas… nunca mais repito estas
graças. É que o dicionário afinal… faz-me uma falta do caraças!
Sem dar por isso, já
escrevi mais uns quantos disparates. Ou não. Seja como for desta vez não peço desculpa. Em primeiro lugar
porque,—modéstia à parte,—esta minha abordagem à linguística,—a verdade seja
dita,— até foi muito erudita. Além disso, como disse algures atrás, a língua
portuguesa sendo nossa, também é minha! E é bela! Gosto de brincar com ela. Mas
por agora, acabou-se a brincadeira, ainda que também seja… coisa Caminhadeira.