segunda-feira, 23 de julho de 2012

Coisas de Caminhadeiro (2)


   Olá pessoal caminhadeiro! Todos bem? Eu também! Aliás, até estou bem disposto. Tanto, que resolvi presentear-me. Comprei mais um dicionário. E mais, comprei um Houaiss. Dois volumes. Por causa do novo acordo ortográfico. O nosso amigo Gil, que parece ter vários, diz-me que é um dos bons dicionários. Acredito. Ele é perito. E para o estrear, resolvi verificar se fizeram mexidas. Numa das nossas palavras preferidas. Isso mesmo, caminhar! E tudo isto porque, escrever à revelia das convenções, pode gerar confusões. Por exemplo, se caminhar se pudesse agora, também dizer e escrever, camilhar? Vá, não antecipem piadas jocosas, pois se já fizemos muitos quilómetros, também andámos umas milhas jeitosas. Também se poderia agora dizer e escrever, caminar. O que, de certeza, não seria surpresa. Já temos uma caminhadeira a caminar. A Carmen. E se a Carmen camina, o Octávio caminha, e ambos fazem a mesma coisa, penso que há um consenso. Ou seja, também devem ter feito um acordo. Que me parece não  ter nada de ortográfico. Mas que devem ir celebrando, pelo menos, de vez em quando. Mas para não fazer mais conjeturas, vamos de caminho, ver o que diz o livrinho. Ora bem: camilista, camilo, caminha,… caminha? Substantivo feminino, diminutivo de cama? Cama? De repente fiquei com sono, e sou tentado ao abandono. Mas insisto. Caminhada, caminhador… e, finalmente, cá está! Caminhar: percorrer caminho, andar, jornadear, viajar…? Mau… Isto é que é um bom dicionário, Gil? Percorrer caminho, andar, jornadear, viajar? Então e, conviver, comer e beber, camaradagem, ver a paisagem, sentir a chuva, o frio o calor, discutir com ardor, descer e subir? E rir, amiúde, que é bom para a saúde. E até acontece, ser bom para o stress… Bolas! Que decepção! Perdão queria dizer: que deceção! Quanto ao dicionário, vou fazer a devolução. Mas as palavras são contagiantes. Folheio mais umas páginas, e já não penso como antes. Admito! Caminhar,—se calhar—é uma  excepção! Porra! Queria escrever, exceção! Ainda bem que tenho o dicionário à mão. E resolvo. Já não o devolvo! O dicionário não tem culpa. Não caminha. Só quem pratica, sabe o que caminhar significa. Uma palavra não se explica só com sinónimos. Se caminhar fosse apenas andar, bastava-me uma passadeira, para me consolar. Tenho uma. Mas é pequena, solitária, logo… precária. Embora, eu possa andar mais depressa, ou devagar, como diz o manual. Que de outras informações faz tabu. Por exemplo, se quiser parar e voltar atrás, arrisco-me a cair de cu. Penso em comprar outra. Uma coisa em bom! Vou à Decathlon. Ah! Agora sim! São inúmeras. Com uma consola, com vários comandos. E que preciso de comandar, para caminhar? Mas é larga… comprida… bonita… bem acabada… o piso é negro, como o asfalto… Aaaalto! Tive um sobressalto. Com este tamanho, e tanta vantagem, ainda lhe põem uma portagem. E perco a coragem. Não compro! Pois se eu até sei, que caminhar é mais, muito mais, do que a palavra parece significar! Caminhar é, na verdade, mais do que o ato físico, parente da mobilidade. É terapia para várias mazelas. Não tem efeitos secundários, não deixa sequelas. E faz tão bem ao corpo, como faz á alma. Tem tanto de excitante, como tem de calma. E quando se caminha em grupo, as significâncias, tal como os benefícios, multiplicam-se, tornando-se impossível refletirem-se, numa só palavra ou expressão.

Não fora assim, como explicar o crescimento de um grupo, que começou com meia dúzia apenas, e já conta com algumas dezenas? Para começar, o grupo sempre foi um corpo social saudável. E os corpos saudáveis, naturalmente, crescem. Mesmo não sendo biológicos. Mas parecem.  Porque crescem usando o convite e sugestão,— que o Afonso tão bem faz na canção,—de trazer um amigo também. E um caminhadeiro passar a dois, de dois a quatro, e assim por diante, não parece, afinal,  a mitose, no social? E por falar num Afonso, olá Irene, olá Rui e olá Carlos! Sei que não és Afonso, mas o certo, é que andas lá perto. E um obrigado também, por de vez em quando termos a sorte, de nos trazerem e levarem, à pronúncia do Norte. E deste juntar de gente, com origens geográficas, sociais e profissionais muito variadas, opções políticas, religiosas e clubísticas igualmente distintas, resulta um fervilhar de trocas de experiências, conversas sobre ciências, política e economia, desporto, engenharia, viagens e geografia. Também se fala de música, agricultura, gastronomia e, claro, de linhas férreas, comboios, estações e—já se vê—também do TGV. E nesta profusão de profissões, tendências, gostos e paixões, todos se entendem, ensinam, aprendem, e tiram conclusões. Mas estas proveitosas tertúlias, não são monótonas nem massudas, pois são regularmente entrecortadas, ou se quiserem condimentadas, com divertidos piriripororós (1). E se juntarmos a esta profícua fonte de conhecimento e informação, as regulares visitas de caráter cultural, só se pode concluir que caminhar, afinal, também é ótimo para melhorar… a cultura geral. Benefício a respeito do qual, o dicionário não dizia… nem bem, nem mal.

Segundo o meu defunto e saudoso amigo Matias, no tempo do António da Calçada,—de São Bento, para algum distraído,—o vinho dava de comer a um milhão de portugueses. Hoje, o vinho já não tem essa primazia. Perdeu-a, a favor da burocracia. Que, como decerto constatais, dá de comer a muitos, muitos mais. Ainda assim, a cultura da vinha, a produção e comercialização do vinho e a sua exportação, ainda é para muitos... o ganha pão. Mas chegar aos calcanhares da burocracia, em termos de ocupação, é coisa que dá um trabalhão. E para ajudar o vinho a reconquistar a posição, dá uma ajudinha, a restauração. E a gastronomia. Sem esquecer o turismo e a hotelaria. E ao caminhar por este país fora, usufruímos, e contribuímos ainda que modestamente, para manter vivas estas atividades económicas. Pois que seria, por exemplo, da cultura da vinha, sem os cultores do vinho? Vinho que bebemos com gosto, mas também com brio, sem desvario. E reconhecendo tudo isto, creio  que podemos dizer, sem presunção nem ousadia, que caminhar também ajuda… a economia. Coisa  que o dicionário, também não dizia.

Numa das nossas caminhadas, visitámos o Complexo Mineiro do Lousal. Participei com acrescido agrado, já que aproveitava o ensejo, para voltar ao meu Alentejo. Seduzia-me também a probabilidade de visitar a mina propriamente dita, o que não se concretizou. Desejava experimentar uma aproximação mais realista ao modo de vida penoso dos mineiros, descendo às cafurnas. E desejava fazê-lo, não por falta de imaginação para perceber o sofrimento de que tem que ganhar o pão de cada dia daquela maneira, nem para combater ou testar, qualquer manifestação claustrofóbica. Talvez fosse apenas algum empenho em aprender, a melhor apreciar o que tenho. Nesse dia, após a agradável passagem pela paisagem Alentejana, demos connosco no Armazém Central. Que agora, o que armazena é apenas, o necessário e importante, para o seu funcionamento… como restaurante. Onde comemos, bebemos e cantámos, acompanhando antigos mineiros. Confrontado com o à vontade destes cantadores e sofredores experimentados, um dos nossos cantores de circunstância, lastimou a suposta pobreza das nossas qualidades vocais. Erro de palmatória, que justificou a resposta: vale mais cantar mal, do que chorar bem! Não manifestei a minha discordância a quem fez esta afirmação, porque, que me pareceu de imediato, que o que estava a ser dito era: quem canta, fá-lo sempre bem! Há é quem ouça mal! Pois cantar não é apenas, um exercício vocal. É rir, é chorar e sentir, é espantar o mal. E ou se canta, ou não se canta. Ou se chora, ou não se chora. E só assim não pensa, a pessoa que por ingénua ou distraída, confunde com chorar, essa coisa travestida, que é a lamúria carpida, de fingimento vestida. E quanto a cantar, se alguém desafinar, e fores um homem de bem, acompanha-o, desafinando como ele também. Pois como diz a canção, “no peito do desafinado também bate um coração”. E sendo os protagonistas desta situação, gente que só teve como ofício, a privação e o sacrifício, mas que recusa chorar mal, cantando bem, percebi ao visitar o Lousal, que caminhar também contribui, para elevar a elevar a moral. A de cada um, e no geral. Fui ao dicionário, e a propósito das vantagens para a moral…nem sinal.

Caminhar é também um modo privilegiado, de pôr o corpo a falar. Mas a falar com quem? Ora vejamos: se eu tenho um corpo, e tenho uma mente, então eu sou uma trindade. Que, no que me toca, não tem nada de Santa,e  muito menos de Santíssima, mas me parece evidentíssima. Eu sou eu, o meu corpo e a minha mente. E a trindade fala desalmadamente, mas nem sempre se entende. Porque corpo e mente se comportam, frequente e alternadamente, como governo e oposição. E no meio dessa confusão, estou eu…o Chico. Mas quando se caminha corpo e mente parecem fazer uma trégua, e dão alguma folga ao Eu. E o eu vai ouvindo:—não sei se vou aguentar—diz o corpo. Ao que a mente tanto pode responder:—Aguentas sim que eu ajudo. Como também pode dizer:—Para quê tanto suadouro, a caminhares como uma lesma, para chegares ao restaurante e ficar tudo na mesma? Sou tentado a intervir com o meu dote oratório, lembrando os benefícios para o aparelho respiratório. Mas não me manifesto. Estou a caminhar, e deixo andar. E andando, outras trindades vão falando. Ainda outro dia, quando ultrapassava o meu amigo João, no seu passinho de marchante, algo dançante, e um  pouco ofegante, ouvi dele um pulmão, que à mente dizia:—pensava que deste ar já não se fazia. Como também ouço a sua mente dizer, quando o sente mais ansioso:—a seguir aquela curva, já vês o Estádio do Glorioso. Mas o João não se deixa enganar.  Está a caminhar e deixa falar. E nestes diálogos silenciosos, corpo e mente vão percebendo, o que se ganha com a atividade muscular, o exercício respiratório e cardiovascular… simplesmente a caminhar. E com muito mais eficácia, que o stock de qualquer farmácia. É pois dado adquirido, que caminhar faz bem à saúde. Virtude a que o dicionário também não alude.

 E já agora, ainda quero dizer, que sinto um contido mas imenso prazer, ao ver,—quando passamos por uma vila, uma aldeia, ou pelo breve casario dum lugar,—que para além da conversa que levamos no ar, temos por uso saudar, quem  vemos  e nos vê a caminhar. É que, cruzadas, a conversa, os bons dias boas tardes, a boa tarde bom dia, soam como uma melodia. Pois cada saudação tem um som, tem um tempo, tem um tom, tem um toque de alegria. E nesta sã cortesia, uma música acaba escrita, composta e orquestrada, na pauta que pode ser, qualquer caminho, ou estrada. E por breves momentos, tocando essa música fugaz, mas carregada de paz, que a todos parece agradar, até parecemos a banda, do Chico Buarque de Holanda, que a gente vem ver passar. E como decerto ninguém contesta, que caminhar em grupo é uma festa, depois que a música passou, ficou a satisfação em quem a tocou, e na expressão de quem nos ouviu e olhou. E não sendo jactância, ter um pouco de autoestima, de sentimento de importância, creio poder afirmar, que teria que ser cego, p’ra não ver que caminhar… faz bem ao ego. E que diz o dicionário a respeito dos benefícios p’ro ego? Nada. Nem estopa, nem prego!

Vou terminar. Mas antes, quero dizer que não sei, se escrevi verso prosado, ou se prosa versejei. Só posso reafirmar, que escrevi a pensar, ao ritmo, e nas cadências do andar. E desculpem-me alguns erros, senão mesmo alguns desmandos, pois são falhas de quem ama, falhas de quem acarinha, que me permito cometer, como quem faz uma festinha, e porque a língua portuguesa, sendo nossa… também é minha. E como não conta para o bastão, não sei quantos quilómetros são,—e me parece, que mesmo que soubesse, o Luís não dava baldas,—aqui termino mais um passeio, pelas memórias dos caminhos, dos petiscos, dos bons vinhos, e do convívio prazenteiro. Algumas das muito boas…coisas de Caminhadeiro.

Um abraço. Do Chico.

(1)Nota: Piriripororó.

Tendo sido abordado ocasionalmente por alguns caminhadeiros, no sentido de explicar o significado desta palavra, não o fiz, por falta de conhecimento suficiente, e não querer alinhar, na prática de falar de coisas que desconheço. Muito embora, tal prática, a que se deveria chamar doença, se tenha tornado epidémica, e eventualmente já seja, disciplina académica. Mas, tendo utilizado o termo anteriormente, vi-me na obrigação de esclarecer os interessados. O termo,—piriripororó—foi proferido, tanto quanto me lembro, pela primeira vez no seio dos caminhadeiros, pelo nosso companheiro Gil Furtado, no decorrer da saudosa jornada de Unhais da Serra. Se foi ele ou outrem quem o descobriu, não sei. Mas creio poder afirmar, que quem quer que tenha sido, o fez nalgum velho baú, esconso nos sótãos da imaginação. E foi exatamente aí, que iniciei a minha campanha—entre muito pó e teias de aranha—começando por separar, tudo o que tivesse qualquer coisa escrita. Feito isto, passei a analisar cada frase solta, mesmo sem nexo, e cada palavra, mesmo sem sexo. Oops! Desculpem-me. Fugiu-me a boca p’rá rima. O que eu queria dizer era: cada palavra, mesmo incompleta. A primeira que encontrei, aparentemente com sentido, mas cujo significado não entendi de imediato, dizia: “não consigo convencer a minha namorada a dar uma piripororada”. Ansioso por saber qual o real significado da expressão, revolvi cada caco e fragmento esfarrapado de que dispunha, numa investigação minuciosa, exaustiva e fastidiosa—a que o meu neto certamente chamaria, uma grande seca—para descobrir que o autor, o que queria… era dar uma queca. Esta conclusão pareceu-me correta, pois já o caminhadeiro Gil Furtado utilizara piriripororó, com a mesma conotação erótico-sexual, quando do seu relato de uma ocorrência medieval. Satisfeito e muito mais seguro, continuei. Mas, para não ser cansativo, vou passar apenas algumas, das frases e palavras que encontrei. Por exemplo: piririr, na frase, “a minha reforma não pára de piririr”; ou pororar, em: “os combustíveis estão sempre a pororar”; “ontem passei o serão na gargalhada, ouvindo uns piriripororós com muita piada”; ou, mais adiante: “passei o dia inteiro num piriri-pororó constante”. Vou ficar por aqui. Mas se continuasse, tal como eu, certamente  ficariam surpresos. Porque, todas as expressões que identifiquei, são  atuais e frequentes no nosso meio. O que me levou,—não  conhecendo a língua de origem destas palavras,—a alguma cogitação… Não terão as palavras, atravessado um portal, vindas de outra civilização, vivendo no nosso tempo, mas noutra dimensão? Naah! Eu é que ando a ver muita televisão. Outra particularidade que constatei, foi que,—sabe-se lá porquê,—partindo de uma palavra que significa basicamente um movimento de vaivém, mais afeto, por exemplo à mecânica, quase todas as significâncias, estão associadas ao gozo, ao prazer e à satisfação. Só lamento, o facto da razão desta desta conexão, ter ultrapassado a minha compreensão. Mas já que chegámos até aqui, vamos às conclusões: Piriripororó: locução, resultante de duas palavras, a saber: piriri, forma do verbo piririr, que significa: encolher, diminuir, recuar; e pororó, forma do verbo pororar, que significa: crescer, aumentar, avançar. Em função do contexto, esta palavra poderá também significar: anedota, brincadeira, movimento alternado de vaivém, momento de humor ou comédia, e… o mesmo que viagra… na idade média. Pode ainda, em contextos mais intímos, ter outros significados, que por óbvios, e não sendo vocês pacóvios, me dispenso de enumerar. Ainda assim, aproveito para exemplificar, a versatilidade e abrangência do termo, lembrando aos Caminhadeiros, que de vez em quando têm que faltar, que alguns dos benefícios, que se conseguem caminhando, também se obtêm…piriripororando. E, perguntarão vocês: piriri-pororó, escreve-se com ou sem hífen? Pois não sei, nem quero saber! E se estivessem atentos, já teriam reparado que escrevi das duas maneiras. Por isso façam como eu, e escrevam como muito bem entenderem. Ao sabor da vossa disposição, das condições climatéricas, do dia da semana… como lhes der na gana. Porque,—tal como caminhadeiro,—piriripororó, essa palavra tão versátil, abrangente e linda, não vem nos dicionários,—ainda. E mesmo que viesse? Ir ao dicionário para quê? O dicionário nem explica, o que caminhar significa! E pronto! Já escrevi, está escrito! Mas… nunca mais repito estas graças. É que o dicionário afinal… faz-me uma falta do caraças!

Sem dar por isso, já escrevi mais uns quantos disparates. Ou não. Seja como for desta  vez não peço desculpa. Em primeiro lugar porque,—modéstia à parte,—esta minha abordagem à linguística,—a verdade seja dita,— até foi muito erudita. Além disso, como disse algures atrás, a língua portuguesa sendo nossa, também é minha! E é bela! Gosto de brincar com ela. Mas por agora, acabou-se a brincadeira, ainda que também seja… coisa Caminhadeira.